23.10.08

Texto oficina literatura

Estou fazendo uma oficina de literatura, com o Marcelino Freire, no B_arco (Brasil Arte Contemporânea). Foi uma maneira que encontrei de voltar a escrever mais literatura, ficção. Mas, além da ficção, outro dia ele pediu para escrever um relato sobre o bate papo que tivemos com os escritores Lourenço Mutarelli (autor de "O Cheiro do Ralo") e Marcelo Rubens Paiva (autor de "Feliz Ano Velho"). Para mim, pediu um relato breve. Eis o relato:

Lourenço estava sentado de costas para o cômodo quando ouviu os gritos. De dor e desespero do acusado. Das gargalhadas oficiais.

Marcelo havia bebido. Só queria fazer graça para os amigos quando decidiu pular da pedra imitando o Tio Patinhas.

“Hoje você vai ver como se transforma um inocente em culpado”, disse o delegado. Lourenço não retrucou. Não tinha aprendido a questionar o pai.

A profundidade do poço não estava entre as preocupações de Marcelo. O Tio Patinhas sempre saía ileso. Marcelo não era o Tio Patinhas.

Às vezes Lourenço passava dias na cama, até que o corpo se recuperasse dos castigos, dele próprio ou dos irmãos. O pai não batia no menor, porque era menor. Na menina, por ser menina. Restava ele.

O pai de Marcelo não viu o filho na UTI, não tentou afastar-lhe a sombra do suicídio, nem tirá-lo do lugar. Não teve tempo. Morreu quando ele tinha a idade em que Lourenço ainda temia o delegado.

Lourenço nunca precisou de cadeira de rodas. Precisa de comprimidos, isso sim, um gole de uísque e um pouco de solidão. Sofreu a perda do gato preto. Chorou.

A história de Lourenço comoveu Marcelo. Ele também amargou algumas perdas. Dos movimentos, do pai perseguido, da mulher na separação.

Agora estão ali. Marcelo na sua cadeira. Lourenço na do auditório, sem a almofada. Cada um ri a seu modo, e todos riem com eles. Admirados, querem saber das suas vidas, dos seus trabalhos. Todos querem ser, pelo menos por alguns instantes, um pouco do que são os dois - com ou sem prótese nos dentes*.

* Para quem não estava lá: havia um rapaz que fez interferências bem divertidas e que dizia a todo momento: desculpe, eu estou com uma próteses nos dentes...

Maria Dolores